A MILORDE EDUARDO
Tivemos
hóspedes nestes últimos dias. Partiram ontem e recomeçamos entre nós três uma
união tanto mais encantadora por nada ter permanecido no fundo dos corações
que se queira esconder um do outro. Que prazer sinto ao retomar um novo ser que
me torna digno de vossa confiança! Não recebo nem uma marca de estima de Júlia
e de seu marido sem dizer-me com um certo orgulho da alma: enfim, ousarei
mostrar-me a ele. É por vossos cuidados, é sob vossos olhos que espero honrar
meu presente estado por minhas faltas passadas. Se o amor extinto lança a alma
no esgotamento, o amor subjugado dá-lhe, com a
consciência de sua vitória, uma nova elevação e um mais forte atrativo por
tudo o que é
grande e belo. Seria possível perder o fruto de um sacrifício que nos custou
tão caro? Não, Milorde, sinto que, como vós, meu coração vai utilizar todos os
ardentes sentimentos que venceu. Sinto que é preciso ter sido o que fui para
tornar-me o que devo ser.
Após seis dias
perdidos em conversas com pessoas indiferentes, passamos hoje uma manhã à
inglesa, reunidos e em silêncio, saboreando ao mesmo tempo o prazer de estarmos
juntos e a suavidade do recolhimento. Como são poucas as pessoas que conhecem
as delícias deste estado! Não vi ninguém na França ter dele a mínima ideia. A
conversa dos amigos nunca se esgota, dizem eles. É verdade, a língua fornece
uma tagarelice fácil às afeições medíocres. Mas a amizade, Milorde, a amizade! Sentimento
intenso e celeste, que palavras são dignas de ti? Que língua ousa ser tua
intérprete? O que se diz ao amigo pode algum dia valer o que se sente ao seu
lado? Meu Deus! Como uma mão que se aperta, como um olhar animado, como um
abraço apertado contra o peito, como o suspiro que o segue dizem coisas e como
a primeira palavra que se pronuncia é fria após tudo isso! Oh! Serões de
Besançon! Momentos consagrados ao silêncio e recolhidos pela amizade! Oh!
Bomston! Alma grande, amigo sublime! Não, não depreciei o que fizeste por mim e
minha boca nunca te disse nada.
É certo que
este estado de contemplação é um dos grandes encantos dos homens sensíveis. Mas
sempre achei que os importunos impediam de gozá-lo e que os amigos precisam
estar sem testemunhas para poderem nada dizer-se, à vontade. Deseja-se, por
assim dizer, estar recolhidos um no outro, as menores distrações são
desoladoras, a menor coação é insuportável. Se, algumas vezes, o coração leva
uma palavra à boca é tão doce poder pronunciá-la sem constrangimento. Parece
que não se ousa pensar livremente o que não se ousa dizer da mesma forma:
parece que a presença de um único estranho retém o sentimento e comprime almas
que se compreenderiam tão bem sem ele.
Duas horas se
escoaram assim, entre nós, nessa imobilidade de êxtase mil vezes mais doce do
que o frio repouso dos Deuses de Epicuro. Após o desjejum, as crianças
entraram, como sempre, no quarto de sua mãe mas, em lugar de ir em seguida
encerrar-se com elas no gineceu, segundo seu costume, para compensar-nos, de
alguma forma, do tempo perdido sem nos vermos, fê-los permanecer com ela e não
nos separamos até o almoço. Henriqueta, que começava a saber segurar a agulha,
trabalhava sentada diante de Fanchon que fazia renda, cujo bastidor se apoiava
nas costas de sua cadeirinha. Os dois meninos folheavam sobre a mesa uma
coletânea de imagens, cujo assunto o mais velho explicava ao mais moço. Quando
se enganava, Henriette, atenta e conhecendo a coletânea de cor, tinha o cuidado
de corrigi-lo. Frequentemente, fingindo ignorar diante de que estampa estavam,
fazia disto um pretexto para levantar-se, ir e voltar de sua cadeira à mesa e
da mesa à cadeira. Tais passeios não lhe desagradavam e lhe atraiam
sempre alguma implicância da parte do malidinho; algumas vezes, mesmo, a ela
acrescentava-se um beijo que sua boca infantil ainda sabe aplicar mal, mas de
que Henriqueta, já mais sábia, poupa-lhe de boa vontade o trabalho. Durante
essas pequenas advertências, que eram recebidas e dadas sem muita preocupação,
mas também sem o menor constrangimento, o mais moço contava furtivamente as
varetas de buxo que escondera debaixo do livro.
A Senhora de
Wolmar bordava perto da janela, de frente para as crianças; estávamos, seu
marido e eu, ainda ao redor da mesa de chá, lendo a gazeta, à qual ela dava
bem pouca atenção. Mas à notícia da doença do Rei da França e da afeição
singular de seu povo, que nunca teve igual a não ser a dos Romanos para com
Germânico, ela fez algumas reflexões sobre a boa índole dessa nação doce e
benevolente que todas odeiam e que não odeia nenhuma, acrescentando que somente
invejava, do posto supremo, o prazer de fazer-se amar. Não invejeis nada,
disse-lhe seu marido, com um tom que deveria ter deixado que eu tomasse, há
muito somos todos vossos súditos. Ao ouvir essas palavras, seu trabalho
caiu-lhe das mãos, virou a cabeça e lançou a seu digno esposo um olhar tão
tocante, tão terno, que eu-mesmo estremeci. Não disse nada: que teria dito que
tivesse valido esse olhar? Nossos olhos também se encontraram. Senti, pela
maneira com que seu marido me apertou a mão, que a mesma emoção se comunicara
aos três e que a doce influência dessa alma expansiva agia ao seu redor e
triunfava da própria insensibilidade.
Foi com essas
predisposições que iniciou o silêncio de que vos falava; podeis julgar que não
era de frieza e de tédio. Era interrompido apenas pelas pequenas manobras das
crianças; mesmo assim, logo que cessamos de falar, moderaram, por imitação, sua
tagarelice, como se temessem perturbar o recolhimento geral. A pequena
Superintendente foi a primeira a baixar a voz, a fazer sinal aos outros, a
correr na ponta dos pés, e seus jogos tornaram-se tanto mais divertidos quanto
esse leve constrangimento acrescentava a eles um novo interesse. Esse
espetáculo, que parecia ser posto sob nossos olhos para prolongar nosso
enternecimento, produziu seu efeito natural.
Ammutiscon Le
lingue, e parlem l’alme[2]
Quantas coisas
foram ditas sem abrir a boca! Quantos ardentes sentimentos foram comunicados
sem a fria intervenção da palavra! Insensivelmente, Júlia deixou-se absorver
por aquele que dominava todos os outros. Seus olhos fixaram-se exclusivamente
sobre seus três filhos e seu coração, arrebatado num tão delicado êxtase, animava
seu rosto encantador com tudo o que a ternura materna jamais teve de mais
comovente.
Entregues nós
mesmos a essa dupla contemplação, deixávamo-nos arrastar, Wolmar e eu, para
nossos devaneios, quando as crianças, que os causavam, fizeram com que acabassem.
O mais velho, que se divertia com as imagens, vendo que as varetas impediam seu
irmão de prestar atenção, esperou que as tivesse reunido e, dando-lhe um golpe
com a mão, espalhou-as pelo quarto. Marcelino pôs-se a chorar e, sem agitar-se
para fazê-lo calar, a Sra. de Wolmar disse a Fanchon que levasse embora as
varetas. A criança calou-se imediatamente mas as varetas não deixaram de ser levadas
embora, sem que ele tenha recomeçado a chorar, como eu esperava. Essa
circunstância, que tinha pouca importância, lembrou-me muitas coisas às quais
não prestara atenção e não lembro, pensando no fato, ter visto crianças a quem
se falasse tão pouco e que fossem menos importunas. Quase nunca se afastam de
sua mãe e mal percebemos que estão presentes. São vivas, estouvadas,
buliçosas, como convém, à sua idade, nunca são importunas nem gritonas e vê-se
que são sensatas antes de saber o que é a sensatez. O que mais me espantava nas
reflexões a que tal assunto me conduziu era que isso acontecesse naturalmente e
que, com uma tão intensa ternura por seus filhos, Júlia se atormentasse tão
pouco com eles.
De fato, nunca
a vemos desvelar-se para fazê-los falar ou calar, nem para prescrever-lhes ou
proibir-lhes isto ou aquilo. Não briga com eles, não os contraria em seus
divertimentos, dir-se-ia que se contenta em vê-los e em amá-los e que, quando
tiverem passado o dia com ela, todo seu dever de mãe
está preenchido.
Embora essa
calma tranquilidade me parecesse mais doce de ver do que a inquieta solicitude
das outras mães, eu não estava menos impressionado com uma indolência que
pouco se ajustava às minhas ideias. Teria desejado que ela ainda não estivesse
satisfeita, com tantos motivos para o estar: uma atividade supérflua convém
tanto ao amor materno! Tudo o que via de bom em seus filhos teria desejado
atribuí-lo aos seus cuidados, teria desejado que devessem
menos à natureza e
mais a sua mãe, desejei quase que tivessem defeitos para vê-la mais diligente
em corrigi-los.
Após ter-me por muito tempo ocupado, em silêncio, com
tais reflexões, rompi-o para lhas comunicar. Vejo, disse-lhe, que o Céu
recompensa a virtude das mães pela boa índole dos filhos: mas esta boa índole
quer ser cultivada. E desde o nascimento que deve começar sua educação.
Existirá uma época mais propícia para formá-los do que aquela em que ainda não
possuem nenhuma forma para destruir? Se os entregais a si mesmos desde a
infância, em que idade esperareis deles a docilidade? Mesmo que nada tivésseis
para ensinar-lhes, seria ainda necessário aprender a obedecer-vos. Percebestes
respondeu, que me desobedecem? Isto seria difícil, disse eu, pois não lhes
ordenais nada. Ela sorriu, olhando seu marido e, tomando- me pela mão, levou-me
para o gabinete, onde podíamos conversar os três sem sermos ouvidos pelas
crianças.
Foi lá que, ao
explicar-me tranquilamente suas máximas, ela me fez ver, sob um ar de
negligência, a mais vigilante atenção que já atingiu a ternura materna. Por
muito tempo, disse-me ela, pensei como vós sobre as instruções prematuras e
durante minha primeira gravidez, assustada com todos os meus deveres e com os
cuidados que em breve deveria preencher, falava muitas vezes no assunto, e com
inquietação, com o Sr. de Womar. Que melhor guia podia escolher, nesse ponto,
do que um observador esclarecido, que reunia ao interesse de um pai o
sangue-frio de um filósofo? Ele preencheu e ultrapassou minha expectativa,
dissipou meus preconceitos e ensinou-me a garantir, com menor trabalho, um
sucesso muito mais extenso. Fez-me sentir que a primeira e a mais importante
educação, exatamente aquela que todo o mundo esquece¹ é a de preparar a criança para ser
educada. Um erro comum a todos os pais que creem ter luzes é o de supor que
desde o nascimento seus filhos sejam capazes de raciocinar, e de falar-lhes
como homens antes mesmo que saibam falar. A razão é o instrumento que se pensa
usar para instruí-los enquanto os outros instrumentos devem servir para
formá-la e enquanto, de todas as instruções próprias do homem, aquela que ele
adquire mais tarde e com maior dificuldade é a própria razão. Falando-lhes, desde
sua primeira idade, uma língua que não compreendem, acostumamo-los a
contentarem-se com palavras, a fazer com que outros com elas se contentem, a
controlar tudo que lhes dizemos, a julgar-se tão sábios quanto seus mestres, a
tornarem- se briguentos e teimosos e tudo o que se pensa obter deles por
motivos sensatos só o obtemos, de fato, pelos de temor ou de vaidade que sempre
somos obrigados a acrescentar.
Não há
paciência que não canse enfim a criança que se quer criar dessa maneira e eis
como, aborrecidos, cansados pela eterna incomodação com a qual eles
mesmos os habituaram, os pais, não podendo mais suportar a balbúrdia das
crianças, são
forçados eles mesmos a afastá-las, entregando-as aos mestres, como se se
pudesse um dia esperar de um Preceptor maior paciência ou doçura do que pode
ter um pai.
A natureza,
continuou Júlia, quer que as crianças sejam crianças antes de serem homens. Se
quisermos alterar essa ordem, produziremos frutos precoces que não terão nem maturidade
nem sabor e não tardarão a corromper-se; teremos jovens doutores e velhas
crianças. A infância tem maneiras de ver, de pensar, de sentir, que lhe são próprias.
Nada e menos sensato do que a elas querer substituir as nossas e preferiria
exigir que uma criança tivesse cinco pés de altura a exigir que tivesse
julgamento aos dez anos.
[3]A razão somente
começa a formar-se ao final de vários anos e quando o corpo tiver adquirido uma
certa consistência. É intenção da natureza, portanto, que o corpo se fortifique
antes
que o espírito se exerça. As
crianças estão sempre em movimento, o repouso e a reflexão são o desgosto de
sua idade, uma vida aplicada e sedentária impede-as de crescer e de aproveitar;
nem seu espírito, nem seu corpo podem suportar a sujeição. Continuamente
encerrados num quarto com livros, perdem todo o seu vigor, tornam-se delicadas,
fracas, de má saúde, mais imbecis do que dotadas de razão; e alma sofre por
toda a vida com o definhamento do corpo.
Mesmo que todas
essas instruções prematuras fossem tão proveitosas ao seu julgamento quanto o
prejudicam, ainda assim haveria um enorme inconveniente em dar-lhos
indistintamente e sem consideração para com aquelas que convêm melhor ao gênio
de cada criança. Além da constituição comum à espécie, cada uma traz, ao
crescer, um temperamento particular que determina seu gênio e seu caráter e que
não se deve
transformar
nem forçar, mas formar e aperfeiçoar. Todos os caracteres são
bons e sãos em si mesmos, segundo o Sr. de Wolmar. Há, diz ele, erros na
natureza1. Todos os vícios que se imputam a seu natural são o efeito
das más formas que recebeu. Não há celerado cujas inclinações, se tivessem sido
mais bem dirigidas, não teriam produzido grandes virtudes. Não há espírito
pérfido do qual não se tivesse extraído talentos úteis ao tomá-lo de uma certa
maneira, como essas figuras disformes e monstruosas que tornamos belas e bem
proporcionadas colocando-as em seu ponto de vista. Tudo concorre para o bem
comum no sistema universal. Todo homem tem seu lugar assinalado na melhor ordem
das coisas, trata-se de encontrar esse lugar e de não alterar essa ordem. Que acontece
com uma educação iniciada desde o berço e sempre segundo uma mesma fórmula, sem
levar em consideração a prodigiosa diversidade dos espíritos? Acontece que se
dão à maioria instruções perniciosas ou impróprias; que os privam das que lhes
conviriam; que se constrange de todos os lados a natureza; que se apagam as
grandes qualidades da alma, para substituir-lhes as pequenas e aparentes que
não possuem nenhuma realidade; que, treinando indistintamente para as mesmas
coisas tantos talentos diferentes, destroem-se uns pelos outros, confundem-se
todos; que, depois de muitos cuidados perdidos em estragar nas crianças
os verdadeiros dons da natureza, vê-se murchar em pouco tempo esse
esplendor passageiro e frívolo que se lhes prefere, sem que o natural abafado
volte algum dia; que se perde ao mesmo tempo o que se destruiu e o que se fez;
que, finalmente, como fruto de tanto trabalho levianamente assumido, todos
esses pequenos prodígios tornam-se espíritos sem força e homens sem mérito,
notáveis unicamente por sua fraqueza e por sua inutilidade. [4]
Compreendo
essas máximas, disse a Júlia, mas tenho dificuldades em harmonizá-las com
vossas próprias opiniões sobre a pequena vantagem que há em desenvolver o gênio
e os talentos naturais de cada indivíduo, seja para
sua própria felicidade, seja para o verdadeiro bem da sociedade. Não é
infinitamente preferível formar um perfeito modelo de homem sensato e do homem
de bem, depois aproximar cada criança desse modelo pela força da educação,
estimulando um, retendo outro, reprimindo as paixões, aperfeiçoando a razão,
corrigindo a natureza... Corrigir a natureza! Disse Wolmar interrompendo-me,
esta palavra é bela, mas antes de usá-la seria preciso responder ao que Júlia
acaba de dizer-vos.
Uma resposta
peremptória, ao que me parecia, era a de negar o princípio; foi o que fiz.
Supondes sempre que essa diversidade de espíritos e de gênios, que distinguem
os indivíduos, seja a obra da natureza e isto não é nada menos do que evidente.
Pois, enfim, se os espíritos são diferentes eles são desiguais e, se a natureza
os tornou
desiguais, foi dotando-os a uns mais do que a outros um
pouco mais de sentido de finura, de extensão da
memória ou de capacidade de atenção. Ora, quanto aos sentidos e à memória, está
provado pela experiência que seus diversos graus de extensão e de perfeição não
são a medida do espírito dos homens e, quanto à capacidade de atenção, depende
ela unicamente da força das paixões que nos animam e já está provado que todos
os homens são, por sua natureza, suscetíveis de paixões suficientemente fortes
para dotá-los do grau de atenção ao qual está ligada a superioridade do
espírito.
Se a
diversidade dos espíritos, em lugar de vir da natureza, fosse uma consequência
da educação, isto é, das diferentes ideias, dos diferentes sentimentos
excitados em nós desde a infância pelas coisas que nos impressionam, as
circunstâncias em que nos encontramos e todas as impressões que recebemos, bem
longe de esperar para conhecer o caráter de seu espírito para educar as
crianças, seria preciso, pelo contrário, apressar-se em determinar
convenientemente esse caráter, através de uma educação própria àquele que
queremos dar-lhes.
A isso
respondeu-me que não era seu método negar o que via quando não podia
explicá-lo. Olhai, disse-me ele, esses dois cães que estão no pátio. São da
mesma ninhada, foram alimentados e tratados da mesma maneira, nunca se
separaram: contudo, um deles é vivo, alegre, afetuoso, inteligente; o outro
vagaroso, pesado, rabugento, e nunca se pôde ensinar- lhe alguma coisa. Só a
diferença entre os temperamentos produziu neles a dos caracteres, como apenas a
diferença da organização interior produz em nós a dos espíritos; o resto foi
semelhante... Semelhante? Interrompi, que diferença? Quantas pequenas coisas
agiram num e não no outro! Quantas pequenas circunstâncias os impressionaram de
forma diferente sem que o tenhais percebido! Bom, replicou, estais raciocinando
como os antropólogos. Quando se lhes obstava que dois homens nascidos sob o
mesmo aspecto tinham sortes tão diferentes, rejeitavam bem longe essa identidade.
Afirmavam que, dada a rapidez dos céus, havia uma distância imensa entre o tema
de um desses homens e o do outro e que, se tivesse sido possível marcar os dois
instantes exatos de seus nascimentos, a objeção ter-se-ia tornado prova.
Abandonemos,
peço-vos, todas essas sutilezas e permaneçamos na observação. Ela nos ensina
que há caracteres que se manifestam quase ao nascer e crianças que podem ser
estudadas no seio de sua ama. Aqueles formam uma classe à parte e são educados
ao começar a viver. Mas, quanto aos outros, que se desenvolvem menos
rapidamente, querer fechar seu espírito antes de conhecê-lo significa expor-se
a estragar o bem que a natureza fez e fazer em seu lugar um mal maior. Platão,
vosso mestre, não afirmava que todo o saber humano, toda a filosofia apenas
podia extrair de uma alma humana o que a natureza nela pusera, assim como as
operações químicas só extraíram de algum composto a quantidade de ouro que ele
já continha? Isso não é
verdade nem no que diz respeito a nossos sentimentos nem a nossas ideias, mas é
verdade no que diz respeito a nossas disposições em adquiri-los. Para
transformar um espírito seria preciso transformar a organização interior, para
transformar um caráter seria preciso transformar o temperamento de que depende.
Já ouvistes dizer que um exaltado se tenha tornado fleugmático e que um
espírito metódico e frio tenha adquirido imaginação? Quanto a mim, penso que
da mesma forma seria fácil fazer de um moreno um loiro e de um tolo um homem de
espírito. É portanto em vão que se pretenderia refundir os diferentes espíritos
num modelo comum. Podem ser coagidos e não transformados: é possível impedir os
homens de se mostrarem tais quais são mas não torná-los diferentes e, se se
disfarçam no curso ordinário da vida, vê-los-eis em todas as ocasiões
importantes retomar seu caráter original e a ele entregar-se com tanto menor
método quanto não mais o conhecem ao entregar-se. Ainda uma vez, não se trata
de transformar o caráter e de modificar o natural mas, pelo contrário, de
lançá-lo tão longe quanto pode ir, de cultivá-lo e de impedir que degenere,
pois é assim que um homem se torna tudo o que pode ser e que a obra da natureza
nele se completa pela educação. Ora, antes de cultivar o caráter é preciso
estudá-lo, esperar tranquilamente que se mostre, fornecer-lhe as ocasiões de
mostrar-se e, de preferência, antes abster-se sempre de fazer algo a agir fora
de propósito. A tal gênio é preciso dar asas, a outros entraves; um quer ser
apressado, o outro retido; um quer que o lisonjeiem e o outro que o intimidem;
seria preciso ora esclarecer ora confundir. Tal homem é feito para levar o
conhecimento humano até seu último limite, a tal outro é mesmo funesto saber
ler. Esperemos a primeira centelha da razão, é ela que faz aparecer o caráter e
lhe dá sua verdadeira forma, é através dela também que é cultivado e não há,
antes da razão, verdadeira educação para o homem.
Quanto às
máximas de Júlia, com que não concordais, não sei o que nelas vedes de
contraditório: quanto a mim, acho-as perfeitamente harmonizadas. Cada homem
traz ao nascer um caráter, um gênio e talentos que lhe são próprios. Os que são
destinados a viver na simplicidade campestre não precisam, para serem felizes,
do desenvolvimento de suas faculdades e seus talentos escondidos são como as
minas de ouro do Valais que o bem público não permite explorar. Mas no estado
civil, onde há menor necessidade de braços do que de cabeças, e onde cada um
deve conta a si mesmo e aos outros de todo o seu valor, importa aprender a
extrair dos homens tudo o que a natureza lhes deu, a dirigi-los para o lado em
que podem ir mais longe e sobretudo a alimentar suas inclinações com tudo o que
pode torná-las úteis. No primeiro caso, só se considera a espécie, cada um faz
o que fazem todos os outros, o exemplo é a única regra, o hábito é o único
talento e cada um somente exerce, de sua alma, a parte comum a todos. No
segundo, considera-se o indivíduo: que pertence ao homem em geral,
acrescenta-se tudo o que pode ter a mais do que um outro; seguindo-o tão longe
quanto a natureza o conduz far-se-á dele o maior dos homens se tiver o que é
preciso para sê-lo. Estas máximas se contradizem tão pouco que a prática é a
mesma para a primeira idade. Não instruais o filho do camponês pois não lhe
convém ser instruído; não instruais o filho do Citadino pois ainda não sabeis que
instrução lhe convém. Seja como for, deixai formar-se o corpo até que a razão
comece a despontar: é então o momento de cultivá-la.
Tudo isso me
pareceria perfeito, disse eu, se não visse um inconveniente que prejudica
muito as vantagens que esperais desse método, é o de deixar que as crianças
adquiram mil maus hábitos que só se evitam com os bons. Vede as que se
abandonam a si mesmas, contraem em breve todos os defeitos cujo exemplo
impressiona seus olhos porque esse exemplo é fácil de ser seguido e nunca
imitam o bem, que custa mais praticar. Acostumados a obter tudo, a fazer em
qualquer ocasião sua irrefletida vontade, tornam-se turbulentas, obstinadas,
incorrigíveis... Mas, continuou o Sr. de Wolmar, parece-me que observastes o
contrário nas nossas e que foi o que causou esta conversa. Confesso-o, disse, e
é exatamente o que me espanta. Que fez ela para torná-las dóceis? Como agiu?
Que substituiu ao jugo da disciplina? Um jugo bem mais inflexível, disse
imediatamente, o da necessidade: mas, narrando-vos sua conduta, ela vos fará
compreender melhor suas ideias. Então levou-a a explicar-me seu método e, após
uma curta pausa, eis mais ou menos como ela me falou.
Felizes os bem
nascidos, meu amável amigo! Não presumo tanto de nossos cuidados quanto o Sr.
de Wolmar. Apesar de suas máximas, duvido que se possa algum dia tirar bom
proveito de um caráter ruim e que qualquer índole possa ser levada ao bem: mas,
finalmente, convencida da qualidade de seu método, procuro conformar-me a ele
em toda a minha conduta na direção da família. Minha primeira esperança é que
os maus não tenham saído de meu seio, a segunda é de educar bastante bem os
filhos que Deus me deu, sob a direção de seu pai, para que tenham um dia a
felicidade de a ele se assemelharem. Para isso, procurei fazer minhas as regras
que me prescreveu, conferindo-lhes um princípio menos filosófico e mais
conveniente ao amor materno: é o de ver meus filhos felizes. Foi este o
primeiro desejo de meu coração ao usar o doce nome de mãe e todos os cuidados de
minha vida são destinados a realizá-lo. A primeira vez que segurei nos braços
meu filho mais velho pensei que a infância é quase um quarto das mais longas
vidas, que raramente chegamos aos três outros quartos e que é uma sabedoria bem
cruel a de tornar infeliz essa primeira parte para assegurar a felicidade do
resto, que talvez nunca chegue. Pensei que durante a fraqueza da primeira idade
a natureza subjuga as crianças de tantas maneiras que é bárbaro acrescentar a
esse jugo o poder de nossos caprichos, retirando-lhe uma liberdade tão limitada
e da qual podem abusar tão pouco. Resolvi poupar a meu filho, tanto quanto
possível, todo tipo de coação, deixa-lhe todo o uso de suas pequenas forças e
de não impedir nele nenhum dos impulsos da natureza. Já tive com isso duas
grandes vantagens: uma a de afastar de sua alma recém-nascida a mentira, a
vaidade, a cólera, a inveja, numa palavra, todos os vícios que nascem da
escravidão e que se é obrigado a fomentar nas crianças para obter delas o que
se exige: a outra, a de deixar seu corpo fortificar-se livremente pelo
exercício contínuo que o instinto lhe pede. Acostumado, como os camponeses, a
andar ao sol, ao frio com a cabeça descoberta, a esfalfar-se, a suar, a
enrijecer-se como eles às injúrias do ar, torna-se mais robusto vivendo mais
contente. É o caso de pensar na idade adulta e nos acasos da humanidade. Já
vo-lo disse, temo essa pusilanimidade assassina que, à força de delicadeza e
de cuidados, enfraquece uma criança, retira-lhe a energia, atormenta-a com uma
eterna sujeição, domina-a com mil vãs precauções, enfim, a expõe por toda a
vida aos perigos inevitáveis dos quais a quer preservar por um momento e, para
evitar-lhe alguns resfriados em sua infância, prepara-lhe de longe pneumonias,
pleurisias, insolações e a morte logo que se torna homem.
O que dá às
crianças entregues a si mesmas a maioria dos defeitos de que falais é quando,
não contentes em fazer sua própria vontade, fazem ainda com que os outros a
façam e isso pela insensata indulgência das mães a quem não se compraz senão
favorecendo todos os caprichos de seu filho. Meu amigo, orgulho-me por nada
terdes visto nos meus que mostre o poder e a autoridade, mesmo com o último
dos empregados, e por também não me terdes visto aplaudir secretamente as falsas
complacências que se têm para com eles. É aqui que julgo seguir uma estrada
nova[5] e
segura para tornar ao mesmo tempo uma criança livre, tranquila, afetuosa,
dócil e isso de um modo muito simples, o de convencê-la de que é apenas uma
criança.
Considerando a
infância em si mesma, existirá no mundo um ser mais fraco, mais digno de
piedade, mais à mercê de tudo o que o rodeia, que tenha tanta necessidade de
piedade, de amor, de proteção quanto uma criança? Não parece ser por essa razão
que as primeiras vozes que lhe são sugeridas pela natureza são os gritos e as
queixas, que ela lhe deu um aspecto tão doce e um ar tão comovente a fim de
que tudo o que dela se aproxima se interesse por sua fraqueza e se apresse em
socorrê-la? Que há pois de mais chocante, de mais contrário à ordem do que ver
uma criança arrogante e rebelde dominar tudo o que a rodeia, adquirir
insolentemente um tom de patrão para com aqueles que apenas precisariam
abandoná-la para fazê-la morrer e pais cegos que, aprovando essa audácia, a
preparam para tornar-se o tirano de sua ama, antes de tornar-se o deles.
Quanto a mim,
nada poupei para afastar de meu filho a perigosa imagem do poder e da servidão
e para nunca dar-lhe a oportunidade de pensar que foi servido mais por dever do
que por piedade. Este ponto é, talvez, o mais difícil e o mais importante de
toda a educação e a narração infindável de todas as precauções que tive de
tomar para evitar nele esse instinto tão pronto a distinguir os serviços
mercenários dos empregados e a ternura dos cuidados maternos não acabaria
nunca.
Um dos
principais meios que empreguei foi, como já vo-lo disse, o de convencê-lo bem
da impossibilidade em que o mantém sua idade de viver sem nossa assistência.
Após o quê, não tive dificuldade em mostrar-lhe que toda a ajuda que se é
forçado a receber de outras pessoas são atos de dependência, que os empregados
têm uma verdadeira superioridade sobre ele, pelo fato de não poder prescindir
deles, enquanto ele não lhes serve para nada; de maneira que, longe de envaidecer-se
com seus serviços, recebe-os com uma espécie de humilhação, como um testemunho
de sua fraqueza e deseja ardentemente a época em que será bastante grande e
bastante forte para ter a honra de servir-se a si mesmo.
Estas ideias,
disse eu, seriam difíceis de serem estabelecidas em casas em que o pai e a mãe
se fazem servir como crianças: mas nesta, onde cada um, a começar por vós, tem
suas funções a preencher, e onde as relações entre criados e patrões são apenas
uma perpétua troca de serviços e de cuidados, não creio que seja impossível
instituí-lo. Contudo, falta-me conceber como crianças acostumadas a ver suas
necessidades previstas não estendam esse direito aos seus caprichos ou como não
sofreram algumas vezes com a disposição de um empregado que tratará como
capricho uma verdadeira necessidade.
Meu amigo,
replicou a Senhora de Wolmar, uma mãe pouco esclarecida vê monstros em toda a
parte. As verdadeiras necessidades são muito limitadas nas crianças como nos
homens, e deve-se olhar mais a duração do bem-estar do que o bem-estar de um só
momento. Pensais que uma criança que não é incomodada possa sofrer
suficientemente com o humor de sua governanta sob os olhos de uma mãe para
sentir-se incomodada? Supondes inconvenientes que nascem de vícios já adquiridos,
sem pensar que todos os meus cuidados tiveram o objetivo de impedir que tais
vícios nascessem. Naturalmente, as mulheres amam as crianças. A
desinteligência eleva-se entre elas somente quando uma quer submeter s outra
aos seus caprichos. Ora, isso não pode acontecer aqui, nem à criança, de quem
nada se exige, nem à governanta, a quem a criança não deve ordenar nada. Neste
ponto, fiz exatamente o contrário de outras mães que fingem querer que a
criança obedeça ao empregado e querem, de fato, que o empregado obedeça à
criança. Ninguém aqui manda nem obedece. Mas a criança só obtém daqueles que
dela se aproximam a exata complacência que ela tiver para com eles. Com isso,
sentindo que tem, sobre tudo o que a rodeia, apenas a autoridade da
benevolência, torna-se dócil e complacente; procurando atrair os corações dos
outros, o seu afeiçoa-se a eles por sua vez, pois ama- se fazendo-se amar; é o
infalível efeito do amor-próprio e, dessa afeição recíproca, nascida da
igualdade, resultam sem esforço as boas qualidades que se pregam continuamente
a todas as crianças sem nunca obter nenhuma.
Pensei que a
parte mais essencial da educação de uma criança, aquela de que nunca se fala
nas educações mais bem cuidadas é a de fazer-lhes bem sentir sua miséria, sua
fraqueza, sua dependência e, como vos disse meu marido, o
pesado jugo da necessidade que a natureza impõe ao homem e isso não somente a
fim de que seja sensível ao que se faz para aliviar-lhe tal jugo, mas sobretudo
a fim de que conheça cedo em que categoria a providência a colocou, que não se
eleve acima de sua alçada e que nada de humano seja estranho à sua pessoa.
Instigados
desde o nascimento pela indolência na qual foram alimentados, pela
consideração que todo o mundo tem por eles, pela facilidade em obter tudo o que
desejam, a pensar que tudo deve ceder a seus caprichos, os jovens entram na
sociedade com esse preconceito inconveniente e muitas vezes só se corrigem à
força de humilhações, de afrontas e de desesperos; ora, gostaria muito de
evitar a meu filho essa segunda e mortificante educação, dando-lhe, com a
primeira, uma mais justa opinião das coisas. Resolvera a princípio conceder-lhe
tudo o que pedisse, persuadida de que os primeiros impulsos
da natureza são
sempre bons e salutares. Mas
não tardei a saber que, ao considerar como um direito o fato de serem
obedecidas, as crianças saíam do estado natural quase ao nascer e adquiriam
nossos vícios pelo nosso exemplo, os delas por nossa leviandade. Vi que se
quisesse contentar todos os seus caprichos eles cresceriam com minha
complacência, que haveria sempre um ponto em que seria preciso parar e em que a
recusa se lhe tornaria tanto mais sensível por estar menos acostumada a ela.
Não podendo pois, enquanto esperava a razão, evitar-lhe todo pesar, preferi o
menor e o de menor duração. Para que uma recusa lhe fosse menos cruel,
acostumei-o logo à recusa e, para poupar-lhe longos desesperos, lamentações,
rebeldias, tornei qualquer recusa irrevogável. É verdade que recuso o menos
possível e que penso duas vezes antes de fazê-lo. Tudo o que se lhe concede é
concedido sem condições, logo ao primeiro pedido, e somos muito indulgentes
neste ponto: mas nunca obtém alguma coisa sendo importuno; o choro e a
adulação são igualmente inúteis. Convenceu-se tão bem desse fato que cessou de
usá-los; à primeira palavra resigna-se e não se apoquenta mais ao ver
fechar-se um cartucho de bombons que desejaria comer do que ver voar um pássaro
que desejaria agarrar, pois sente a mesma impossibilidade de ter um e outro.
Não vê no que se lhe retira nada mais do que não pôde conservar nem no que se
lhe recusa senão o que não pôde obter e, longe de golpear a mesa contra a qual
se feriu, não bateria na pessoa que lhe resiste. Em tudo o que o aflige sente o
império da necessidade, o efeito de sua própria fraqueza, nunca a obra da
malquerência alheia... Um momento! Disse ela com uma certa veemência, ao ver
que eu ia responder, pressinto vossa objeção, chegarei a ela num instante.
O que alimenta
a gritaria das crianças é a atenção que lhe damos, seja para ceder a elas seja
para contrariá-las. Às vezes, para chorar o dia inteiro basta-lhes perceber que
não queremos que chorem. Quer as adulemos quer as ameacemos, os meios que
usamos para fazê-las calar são todos perniciosos e quase sempre ineficazes.
Ocuparmo-nos com seus choros é para elas uma
razão para continuá-los, mas corrigem-se logo quando veem que não lhes damos
importância pois, grandes e pequenos, ninguém gosta de trabalho inútil. Eis
exatamente o que aconteceu com meu filho mais velho. Era a princípio um pequeno
gritão que atordoava todo mundo e sois testemunha de que ninguém o ouve agora
na casa, até parece que não há crianças. Chora quando sofre, é a voz da
natureza que nunca se deve coagir, mas cala-se no momento em que não sofre
mais. Assim, presto muita atenção a seu choro, tendo a certeza de que nunca
chora em vão. Com isso ganho a certeza de saber o momento exato em que sente
dor e aquele em que não sente, quando está com saúde e quando está doente;
vantagem que se perde com aqueles que choram por capricho e somente para se
fazerem acalmar. De resto, confesso que isso não é fácil de se obter das Amas e
das governantas pois, como nada é mais aborrecido do que ouvir sempre uma
criança queixar-se e como essas boas mulheres nunca veem senão o instante
presente, não pensam que, fazendo calar a criança hoje, ela chorará mais
amanhã. O pior é que a
obstinação que adquire terá consequências quando tiver mais idade. A mesma
causa que a torna gritona aos três anos torna-a rebelde aos doze, briguenta aos
vinte, arrogante aos trinta e insuportável a vida inteira.
Chego agora a
vós, disse-me sorrindo. Em tudo o que se concede às crianças, elas veem
facilmente o desejo de comprazer-lhes; em tudo o que delas se exige ou que a
elas se recusa, devem supor razões, sem pedi-las. É outra vantagem que se ganha
ao usar com elas antes a autoridade do que a persuasão nas ocasiões necessárias
pois, como não é possível que percebam às vezes a razão que temos em agir
assim, é natural que a suponham, mesmo quando não tiverem condições de vê-la.
Pelo contrário, logo que tivermos submetido alguma coisa ao seu julgamento,
desejam decidir sobre tudo, tornando-se sofistas, sutis, de má-fé, fecundos em
trapaças, procuram sempre reduzir ao silêncio os que têm a fraqueza de expor-se
às pequenas luzes. Quando se é obrigado a justificar-lhes as coisas que não
estão em condições de compreender, atribuem ao capricho a conduta mais prudente,
logo que ela estiver acima de seu alcance. Numa palavra, o único meio de
torná-las dóceis à razão não é o de raciocinar com elas mas o de bem convencê-las
de que a razão está acima de sua idade, pois nesse caso a supõem no lado em que
deve estar, a menos que não se lhes dê justo motivo para pensar de outra
maneira. Sabem perfeitamente que não se quer atormentá-las quando têm certeza
de que as amamos e as crianças raramente se enganam neste ponto. Portanto,
quando recuso alguma coisa às minhas, não argumento com elas, não lhes digo por
que não quero mas ajo de forma que o vejam tanto quanto possível e, algumas
vezes, a posteriori. Dessa maneira, acostumam-se a compreender que nunca as
recuso sem ter uma boa razão, embora nem sempre a percebam.
Baseada no
mesmo princípio, não suportarei também que meus filhos se intrometam na
conversa das pessoas sensatas e imaginem tolamente ter seu lugar entre elas
como os outros, quando se suporta sua tagarelice fora de hora. Quero que
respondam modestamente e em poucas palavras quando são interrogadas sem nunca
falar por movimento próprio e, sobretudo, sem que intervenham para questionar,
fora de propósito, as pessoas mais idosas do que elas, às quais devem respeito.
Na verdade,
Júlia, disse interrompendo-a, isso é muito rigor
para uma mãe tão terna! Pitágoras não era mais severo com seus discípulos do
que sois com os vossos. Não somente não os tratais como homens mas dir-se-ia
que temeis vê-los deixar cedo demais de serem crianças. Que modo mais agradável
e mais seguro têm para se instruírem do que interrogar, sobre as coisas que
ignoram, as pessoas mais esclarecidas do que eles? Que pensariam de vossas
máximas as Senhoras de Paris que pensam que seus filhos nunca tagarelam
suficientemente cedo nem por tempo suficiente e que julgam o espírito que terão
quando adultos pelas tolices que recitam enquanto jovens? Wolmar dir-me-á que
isso pode ser bom num país em que o primeiro mérito é o de bem tagarelar, e
onde se é dispensado de pensar contanto que se fale. Mas vós, que desejais
preparar para vossos filhos uma sorte tão doce, como conciliar tanta felicidade
com tanta coação e onde fica, entre toda essa coação, a liberdade que desejais
deixar-lhes?
Como? Replicou
imediatamente: será constranger sua liberdade o fato de impedi-los de atentar
contra a nossa e somente saberiam ser felizes se todo um grupo, em silêncio,
admirasse suas puerilidades? Impeçamos que sua vaidade nasça ou, pelo menos,
detenhamos seus progressos; isto significa trabalhar realmente para sua
felicidade, pois a vaidade do homem é a fonte de seus maiores sofrimentos e não
há ninguém tão perfeito e tão festejado a quem ela não traga ainda mais pesares
do que prazeres[6].
Que pode pensar
uma criança de si mesma, quando vê ao seu redor todo um círculo de pessoas
sensatas a escutá-la, provocá-la, admirá-la, esperar, com uma indolente
solicitude, os oráculos que saem de sua boca e soltar exclamações, com ressonâncias de alegria, a cada absurdo que diz?
A cabeça de um homem teria muita dificuldade em aguentar todos esses falsos aplausos;
julgai o que acontecerá com a dela! A tagarelice das crianças assemelha-se às
predições dos Almanaques. Seria um prodígio se, entre tantas palavras vãs, o
acaso nunca fornecesse um encontro feliz. Imaginai o que fazem então as
exclamações de lisonja numa pobre mãe já por demais enganada por seu próprio
coração e numa criança que não sabe o que diz e sente-se festejada! Não penseis
que pelo fato de conhecer o erro eu me julgue isenta dele. Não, vejo o erro e
caio nele. Mas, se admiro as réplicas de meu filho, pelo menos admiro-as em
segredo, ele nada aprende vendo-me aplaudi-lo por tornar-se tagarela e vaidoso
e os lisonjeadores não têm o prazer de rir de minha fraqueza querendo que eu as
repita.
Um dia em que
tivemos visitas, ao ir dar algumas ordens vi, ao voltar, quatro ou cinco
patetas já crescidos ocupados em brincar com ele e preparando-se para
contar-me, com um ar de ênfase, não sei quantas gentilezas que acabavam de
ouvir e com que pareciam totalmente maravilhados, Senhores, disse-lhes com
bastante frieza, não duvido que não saibais fazer com que algumas marionetes
digam coisas muito bonitas, mas espero que um dia meus filhos sejam homens, que
ajam e falem por si mesmos e então ficarei sabendo, sempre com alegria no
coração, tudo o que tiverem dito e feito de bom. Desde que se viu que essa
maneira de lisonjear não surtia efeito, brinca-se com meus filhos como se
brinca com crianças, não como com um Polichinelo; não se banca mais o
coadjuvante e eles valem sensivelmente mais desde que não são mais admirados.
Quanto às
perguntas, elas não lhes são indistintamente proibidas. Sou a primeira a
dizer-lhes que perguntem devagar, em particular, ao pai ou a mim, tudo o que
precisem saber. Mas não suporto que interrompam uma conversa séria para ocupar
todo mundo com a primeira bobagem que lhes passe pela cabeça. A arte de
interrogar não é tão fácil quanto se pensa. É bem mais a arte dos mestres do que
dos discípulos, é preciso ter já aprendido muitas coisas
para saber
perguntar o que não se sabe. O sábio sabe e indaga, diz um provérbio indiano,
mas o ignorante não sabe nem mesmo o que indagar[7]. Não tendo essa ciência
preliminar, as crianças livremente só fazem quase sempre perguntas ineptas que
não servem para nada, ou profundas e difíceis cuja solução ultrapassa seu
alcance e, visto que não devem saber tudo, é importante que não tenham o
direito de perguntar tudo. Eis por quê, de uma maneira geral, instruem-se
melhor com as perguntas que lhes fazemos do que com as que elas mesmas fazem.
Ainda que esse
método lhes seja tão útil quanto se pensa, a primeira e a mais importante
ciência que lhes convém não será a de serem discretos e modestos e haverá
alguma outra que devam aprender em prejuízo daquela? Que produz então nas
crianças essa emancipação da palavra antes da idade de falar e esse direito de
submeter descaradamente os homens a seu interrogatório? Pequenas perguntadoras
tagarelas, que perguntam menos para se instruírem do que para importunar, para
que todo mundo se ocupe delas, e que tomam ainda maior gosto por essa
tagarelice pelo embaraço em que sabem que lançam, às vezes, suas perguntas
indiscretas, de maneira que cada um se sente inquieto logo que elas abrem a
boca. Não é essa tanto uma forma de instruí-las quanto de torná-las estouvadas
e vãs, inconveniente maior, em minha opinião, do que a vantagem que assim
adquirem, pois a ignorância diminui gradualmente mas a vaidade aumenta sempre.
O pior que
poderá acontecer com essa reserva por demais prolongada seria que meu filho, na
idade da razão, tivesse uma conversa menos ágil, a palavra menos viva e menos
abundante e, considerando como esse hábito de passar a vida dizendo coisas sem
importância amesquinha o espírito, consideraria essa feliz esterilidade mais
como um bem do que como um mal. As pessoas ociosas, sempre entediadas consigo
mesmas, esforçam-se por dar um grande valor à arte de diverti-las e dir-se-ia
que o saber viver consiste em dizer apenas palavras vãs como em dar somente
dons inúteis: mas a sociedade humana tem um objetivo mais nobre e seus
verdadeiros prazeres têm maior solidez. A voz da verdade, a mais digna voz do
homem, o único órgão cujo uso o distingue dos animais, não lhe foi dada para
que dela não tirasse um melhor partido do que o fazem com seus gritos.
Degrada-se abaixo deles quando fala para não dizer nada e o homem deve ser
homem até em suas distrações. Se há polidez em aturdir todo mundo com um vão
palavrório, vejo uma outra bem mais verdadeira em deixar falar de preferência
os outros, em ter maior consideração pelo que dizem do que pelo que diríamos
nós mesmos e em mostrar que os estimamos demais para pensar diverti-los com
ninharias. O bom uso da sociedade, aquele que faz com que nela sejamos
procurados e amados não é tanto o de brilhar mas o de fazer com que os outros
brilhem e de, à força de modéstia, dar a seu orgulho maior liberdade. Não
temamos que um homem de espírito que só se abstém de falar por reserva e discrição
possa alguma vez ser considerado um tolo. Em qualquer país não é possível julgar
um homem pelo que não disse e desprezá-lo por ter-se calado. Pelo contrário,
observa-se em geral que as pessoas silenciosas impõem respeito, que diante
delas está-se atento e que se lhe presta muita atenção quando falam, o que,
deixando-lhes a escolha das ocasiões e não perdendo nada do que dizem, põe toda
a vantagem do lado delas. É tão difícil para mais sábio dos homens conservar
toda a sua presença de espírito num longo fluxo de palavras, é tão raro não lhe
escaparem coisas de que se arrependa mais tarde, que prefere reter o bom a
arriscar o mau. Enfim, quando não é por falta de espírito que se cala, se não
fala, por mais discreto que possa ser, a culpa é dos que estão com ele.
Mas há um longo
caminho dos seis anos aos vinte; meu filho não será sempre criança e, à medida
que sua razão comece a nascer, a intenção de seu pai é de realmente a deixar
exercer. Quanto a mim, minha missão não vai até lá. Alimento crianças e não
tenho a presunção de querer formar homens. Espero, disse, olhando seu marido,
que mãos mais dignas se encarregarão desse trabalho. Sou mulher e mãe, sei
manter-me em meu lugar. Ainda uma vez, função de que estou encarregada
não é a de educar meus
filhos mas de prepará-los para serem educados.
Nisso apenas
sigo mesmo, ponto a ponto, o sistema do Sr. de Wolmar e mais avanço mais sinto
quanto é excelente e justo e quanto se harmoniza com o meu. Considerai meus
filhos e sobretudo o mais velho, conheceis outros mais felizes na terra, mais
alegres, menos importunos? Vós os vedes saltar, rir, correr o dia inteiro sem
incomodar ninguém. De que prazeres, de que independência que podem ter em sua
idade não gozam ou abusam? Contêm-se tão pouco diante de mim do que em minha
ausência. Pelo contrário, sob os olhos de sua mãe têm sempre um pouco mais de
confiança e, embora seja eu a autora de toda a severidade que experimentam,
acham-me sempre menos severa, pois não poderia suportar não ser o que mais amam
no mundo.
As únicas leis
que se lhes impõem ao nosso lado são as da própria liberdade, isto é, as de não
importunar as pessoas mais do que elas os importunam, de não gritar mais alto
do que lhes falam e, como não os obrigamos a se ocuparem de nós, também não
quero que desejem que nos ocupemos deles. Quando não respeitam tão justas leis,
toda sua pena é a de serem imediatamente mandados embora e toda minha arte para
que isso seja uma pena é a de fazer com que não se sintam em nenhum lugar tão
bem quanto aqui. Fora isso, não são coagidos a nada, nunca são forçados a
aprender alguma coisa, não são entediados com vãs punições, nunca são
repreendidos; as únicas lições que recebem são lições de prática recebidas na
simplicidade da natureza. Cada um, bem instruído neste ponto, conforma-se às
minhas intenções com uma compreensão e um cuidado que nada me deixam a desejar
e, se há algum erro a temer, minha constância o evita ou o repara facilmente.
Ontem, por
exemplo, tendo o mais velho tirado o tambor ao mais moço, fizera-o chorar.
Fanchon não disse nada mas, uma hora depois, no momento em que aquele que havia
roubado o tambor estava mais entretido com ele, ela lho retomou; ele a seguia,
pedindo-o novamente e chorando por sua vez. Ela lhe disse: vós o tomastes à
força, de vosso irmão, eu vo-lo retomo da mesma maneira, que tendes a dizer?
Não sou a mais forte? Depois, pôs-se a bater a caixa imitando-o, como se
tivesse nisso muito prazer. Até esse momento tudo ia maravilhosamente bem. Mas
algum tempo depois, ela quis devolver o tambor ao mais moço, então detive-a,
pois não era mais uma lição da natureza e daí poderia nascer um primeiro germe
de inveja entre os dois irmãos. Ao perder o tambor, o mais jovem suportou a
dura lei da necessidade, o mais velho sentiu sua injustiça, ambos conheceram
sua fraqueza e se consolaram em seguida.
Um plano tão
novo e tão contrário às ideias conhecidas assustara-me a princípio. À força de
mo explicar fizeram enfim com que o admirasse e senti que, para guiar o homem,
a marcha da natureza é sempre a melhor. O único inconveniente que encontrava
nesse método, e esse inconveniente pareceu-me muito grande, era o de
negligenciar nas crianças a única faculdade que possuem em todo o seu vigor e
que somente diminui com a idade. Parecia-me que, segundo seu próprio sistema,
mais as operações do entendimento eram fracas, insuficientes, mais se deveria
exercitar e fortificar a memória, tão própria então a sustentar o trabalho. É
ela, dizia eu, que deve substituir a razão até seu nascimento e que a enriquece
quando tiver nascido. Um espírito que não se exercita para nada tornar-se lento
e pesado na inação. A semente não pega num campo mal preparado e começar por
ser estúpido é uma estranha preparação para aprender a tornar-se racional.
Como, estúpido! Exclamou logo a Sra. de Wolmar. Estaríeis confundindo duas
qualidades tão diferentes e quase tão contrárias quanto a memória e o
julgamento?[8]
Como se a quantidade de coisas mal digeridas e desconexas com que se enche uma
cabeça ainda fraca não lhe trouxesse maior prejuízo do que proveito à razão!
Confesso que, de todas as faculdades do homem, a memória é a primeira que se
desenvolve e é a mais fácil de cultivar nas crianças: mas, em vossa opinião,
qual se deve preferir, o que lhes é mais fácil de aprender ou o que lhes
importa mais saber?
Levai em
consideração o uso que nelas se faz dessa facilidade, a violência que se lhes
deve fazer, a eterna coação a que é preciso sujeitá-las para pôr em evidência
sua memória e comparai a utilidade que disso retiram ao mal que se lhes faz
sofrer por isso. Como! Forçar uma criança a estudar línguas que nunca falará,
mesmo antes de ter bem aprendido a sua, fazer-lhe incessantemente repetir e
construir versos que não compreende e cuja harmonia para ela está toda apenas
na ponta dos dedos, confundir seu espírito com círculos e esferas de que não
tem a menor ideia, sobrecarregá-la com mil nomes de cidades e de rios que
confunde continuamente e que reaprende todos os dias; será isso cultivar sua
memória em proveito do seu julgamento e todo esse frívolo saber valerá uma
única das lágrimas que lhe custa?
Se tudo isso
fosse apenas inútil, eu me queixaria menos, mas será nada ensinar uma criança a
contentar-se com palavras e a crer que sabe o que não pode compreender? Será
possível que uma tal quantidade de coisas não prejudique as primeiras ideias
com que se deve dotar uma cabeça humana e não seria preferível não ter memória
a enchê-la com toda essa miscelânea em prejuízo dos conhecimentos necessários
dos quais ocupa o lugar?
Não, se a
natureza deu ao cérebro das crianças essa maleabilidade que o torna próprio a
receber toda espécie de impressões, não é para que nele se gravem nomes de
Reis, datas, termos de heráldica, de esfera, de geografia e todas essas
palavras sem nenhum sentido para sua idade e sem nenhuma utilidade para
qualquer idade, com que se sobrecarrega sua triste e estéril infância; mas é
para que todas as ideias relativas à condição de homem, todas as que dizem
respeito à sua felicidade e o esclarecem sobre seus deveres nele sejam gravadas
cedo em caracteres indeléveis e lhe sirvam para conduzir-se, durante sua vida,
de uma forma que convenha a seu ser e suas faculdades.
Sem estudar nos
livros, a memória de uma criança não permanece por isso ociosa: tudo o que vê,
tudo o que ouve a impressiona e ela o lembra; registra em si mesma as ações, as
conversas dos homens e tudo o que a rodeia é o livro com o qual, sem pensar,
enriquece continuamente sua memória enquanto espera que seu julgamento possa
aproveitar. É na escolha desses assuntos, é no cuidado de apresentar-lhe sem
cessar os que deve conhecer e de esconder-lhe os que deve ignorar que consiste
a verdadeira arte de cultivar a primeira de suas faculdades e é por esse
caminho que se deve procurar formar um acervo de conhecimentos que serve para
sua educação durante a juventude e para sua conduta em todas as épocas. Esse
método, é verdade, não forma pequenos prodígios e não faz brilhar as
governantas e os preceptores mas forma homens sensatos, robustos, sãos de corpo
e de entendimento que, sem serem admirados quando jovens, fazem-se honrar
quando adultos.
Não penseis,
contudo, continuou Júlia, que se negligenciam completamente aqui esses
cuidados a que dais tanta importância. Uma mãe um pouco vigilante controla as
paixões de seus filhos. Há meios para excitar e alimentar neles o desejo de aprender
ou de fazer tal ou tal coisa e, na medida em que tais meios podem conciliar-se
com a mais completa liberdade da criança e não engendram nela nenhuma semente
de vício, uso-os com bastante boa vontade, sem obstinar-me quando não há sucesso,
pois ela terá sempre tempo de aprender mas não há um único momento a perder
para formar-lhe um bom natural e o Sr. de Wolmar tem uma tal ideia do
desenvolvimento da razão que afirma que, ainda que seu filho nada soubesse aos
doze anos, não deixaria de estar instruído aos quinze, sem contar que nada é
menos necessário do que ser sábio e nada o é mais do que ser sensato e bom.
Sabeis que
nosso filho mais velho já lê passavelmente. Eis como nasceu nele a vontade de
aprender a ler. Tinha a intenção de dizer-lhe, de vez em quando, para
diverti-lo, alguma fábula de La Fontaine e já começara quando ele me perguntou
se os corvos falavam. Vi imediatamente a dificuldade para fazer-lhe sentir bem
claramente a diferença entre o apólogo e a mentira; safei-me da dificuldade
como pude e, convencida de que as fábulas são feitas para os homens mas de que
é preciso sempre dizer a verdade nua às crianças, suprimi La Fontaine. A ele
substituí uma coletânea de pequenas histórias interessantes e instrutivas, a
maioria extraídas da Bíblia; depois, vendo que a criança tomava gosto pelos
meus contos, imaginei tornar-lhos ainda mais úteis, procurando compor eu mesma
outros tão divertidos quanto me foi possível e adaptando-os sempre às
necessidades do momento. Escrevia-os pouco a pouco num belo livro ornado de
imagens que conservava bem guardado e do qual lhe lia, de tempos em tempos,
algum conto, raramente, não por muito tempo, e repetindo com frequência os
mesmos, com comentários, antes de passar a outros novos. Uma criança ociosa
está sujeita ao tédio, os pequenos contos serviam de remédio mas, quando o via
mais avidamente atento, lembrava-me, às vezes, de uma ordem a dar e
abandonava-o no momento mais interessante, deixando, negligentemente, o livro.
Ele ia logo pedir à sua Ama ou a Fanchon ou a algum outro que acabasse a
leitura: mas como não deve nada ordenar a ninguém e como todos estavam prevenidos,
nem sempre obedeciam. Um recusava, outro tinha o que fazer, outro gaguejava
lentamente e mal, outro, seguindo meu exemplo, deixava um conto pela metade.
Quando o viram bem aborrecido com tanta dependência, alguém lhe sugeriu
secretamente que aprendesse a ler para libertar-se dela e folhear o livro à
vontade. Ele apreciou o projeto. Foi necessário encontrar pessoas bastante
complacentes para aceitar ensiná-lo, nova dificuldade que se levou apenas tão
longe quanto era necessário. Apesar de todas essas precauções, ele se cansou
três ou quatro vezes; não interferimos. Apenas, esforcei-me por tornar os
contos ainda mais divertidos e ele voltou à carga com tanto ardor que, embora
não faça seis meses que começou a sério, estará em breve em condições de ler
sozinho a coletânea.
É mais ou menos
assim que procurarei excitar seu zelo e sua boa vontade para adquirir os
conhecimentos que exigem continuidade e aplicação e que podem convir à sua
idade, mas embora aprenda a ler não é dos livros que extrairá esses
conhecimentos, pois não se encontram neles e a leitura não convém de forma
nenhuma às crianças. Quero também acostumá-lo cedo a alimentar sua cabeça com ideias
e não com palavras, é a razão pela qual nunca lhe faço aprender alguma coisa de
cor.
Nunca?
Interrompi: é muita coisa, pois é preciso, além disso, que aprenda seu
catecismo e suas preces. É o que vos engana, replicou ela. No que diz respeito
à prece todas as manhãs e todas as noites faço a minha em voz alta no quarto de
meus filhos e é o suficiente para que a aprendam sem que sejam obrigados a fazê-lo:
quanto ao catecismo, não sabem o que é. Como, Júlia! Vossos filhos não aprendem
o catecismo? Não, meu amigo, meus filhos não aprendem o catecismo. Como! Disse
eu profundamente espantado, uma mãe tão piedosa!... Não vos compreendo. E por
que vossos filhos não aprendem catecismo? Afim de que creiam nele um dia, disse
ela, quero fazer deles Cristãos um dia. Ah! Compreendi, exclamei, não quereis
que sua fé seja feita só de palavras nem que saibam apenas sua Religião, mas
que acreditam nela e pensais, com razão, que é impossível ao homem acreditar no
que não
compreende. Sois bem contestador, disse-me sorrindo o Sr. de Wolmar, sereis
Cristão, por acaso? Esforço-me para sê-lo, disse- lhe com firmeza. Creio, da
Religião, tudo o que dela posso compreender e respeito o resto sem rejeitá-la.
Júlia fez-me um sinal de aprovação e retomamos o assunto de nossa conversa.
Após ter
entrado em outros detalhes que me fizeram conceber quanto o zelo materno é
ativo, infatigável e previdente, ela concluiu observando que seu método
reportava-se exatamente às duas finalidades que se propusera, isto é, as de
deixar que se desenvolva o natural das crianças e de estudá-lo. As minhas não
são incomodadas em nada, disse, e não poderiam abusar de sua liberdade, seu
caráter não pode nem depravar-se nem reprimir-se; deixa-se seu corpo
fortificar-se em paz e seu julgamento germinar, a escravidão não avilta sua
alma, os olhares alheios não fazem fermentar seu amor-próprio e não se julgam
nem homens poderosos nem animais acorrentados, mas crianças felizes e livres.
Para defendê-los dos vícios que não estão nelas têm, parece-me, uma defesa mais
forte do que palavras que não ouviriam ou que em pouco tempo as aborreceriam. É
o exemplo dos bons costumes de tudo o
que as rodeia, são as conversas que ouvem, que são aqui naturais a todo mundo e
que não se precisam organizar propositalmente para elas; é a paz e a união de
que são testemunhas, é a harmonia que veem reinar sem cessar, seja na conduta recíproca
de todos, seja na conduta e nas palavras de cada um.
Criados além
disso em sua primeira simplicidade, de onde lhes viriam os vícios cujos
exemplos não viram, paixões que não têm nenhuma ocasião de sentir, preconceitos
que não lhes são inspirados por nada? Vedes que nenhum erro os atinge, que
nenhuma má inclinação se mostra neles. Sua ignorância não é irredutível, seus
desejos não são obstinados, as inclinações para o mal são evitadas, a natureza
é justificada e tudo nos prova que os defeitos de que a acusamos não são obra
dela mas nossa.
É assim que,
entregues à inclinação de seu coração, sem que nada a mascare nem a altere,
nossos filhos não recebem uma forma exterior e artificial mas conservam
exatamente a de seu caráter original; é assim que esse caráter se desenvolve
diariamente diante de nossos olhos sem reservas e que podemos estudar os
movimentos da natureza até em seus princípios mais secretos. Certos de nunca
serem repreendidos nem punidos, não sabem mentir nem esconder-se e, em tudo o que
dizem, seja entre si seja a nós, deixam ver sem embaraço tudo o que têm no
fundo da alma. Livres de tagarelar entre si o dia inteiro, nem mesmo pensam em
constranger-se um momento diante de mim. Nunca os repreendo, nunca os faço
calar, nem finjo escutá-los e, se dissessem as coisas mais censuráveis do
mundo, não daria mostras de saber alguma coisa: mas, de fato, escuto-os com a
maior atenção sem que desconfiem; mantendo em registro exato do que fazem e do que
dizem, são as produções naturais do fundo que é preciso cultivar. Um assunto
depravado em suas bocas é uma erva estranha cuja semente foi trazida pelo
vento; se eu a cortar com uma reprimenda, em breve germinará novamente: em
lugar disso, procuro secretamente sua raiz e tenho o cuidado de arrancá-la. Sou
apenas, disse-me rindo, a criada do Jardineiro, mondo o jardim, retiro-lhe as
más ervas, cabe a ele cultivar as boas.
Convenhamos
também que, com todo o trabalho que teria podido ter, era preciso da mesma
forma ser bem secundada para esperar vencer e que o sucesso de meus cuidados
dependesse do concurso de circunstâncias que talvez somente aqui tenham
existido. Eram necessárias as luzes de um pai esclarecido, para distinguir,
através dos preconceitos estabelecidos, a verdadeira arte de dirigir as
crianças desde seu nascimento; era necessária toda a sua paciência para
prestar-se à execução sem nunca desmentir suas lições por sua conduta; eram
necessárias crianças bem nascidas nas quais a natureza tivesse agido
suficientemente para que se pudesse amar o que era somente sua obra; era
preciso ter ao nosso lado somente criados inteligentes e bem intencionados,
que não se cansassem de entrar nas intenções dos patrões; um único criado
brutal ou adulador teria bastado para estragar tudo. Na verdade, quando se
pensa quantas causas estranhas podem prejudicar os melhores desígnios e
transformar os projetos mais bem combinados, deve-se agradecer a fortuna por
tudo o que se faz de bem na vida e dizer que a sabedoria depende muito da
felicidade.
Dizei, exclamei,
que a felicidade depende mais ainda da sabedoria! Não vedes que esse concurso
de que vos felicitais é vossa obra e que tudo o que de vós se aproxima é
obrigado a assemelhar-se a vós? Mães de família! Quando vos queixais de não
serdes secundadas, como conheceis mal vosso poder! sede tudo o que eleveis ser,
superareis todos os obstáculos, forçareis todos a preencher seus deveres se
preencherdes bem todos os vossos. Vossos direitos não são os da natureza?
Apesar das máximas do vício, eles serão sempre caros ao coração humano. Ah!
Dignai-vos ser mulheres e mães e o mais doce poder que existe na terra será
também o mais respeitado!
Concluindo essa
conversa, Júlia observou que tudo se tornava mais fácil a partir da chegada de
Henriqueta. É certo, disse, que precisaria ter muito menos cuidados e
habilidade, se quisesse introduzir a emulação entre os dois irmãos, mas esse
meio parece-me por demais perigoso, prefiro ter mais trabalho e nada arriscar.
Henriqueta supre esse fato; como é de outro sexo, mais velha do que eles, como
ambos a amam até a loucura e como ela tem um juízo acima de sua idade, faço
dela, num certo sentido, a primeira governanta deles e com tanto mais sucesso
suas lições são menos suspeitas.
Quanto a ela,
sua educação está sob minha responsabilidade, mas os princípios são tão
diferentes que merecem uma conversa à parte. Pelo menos, posso dizer desde
agora que será difícil nela acrescentar algo aos dons da natureza e que valerá
sua própria mãe se alguém no mundo a puder valer.
Milorde, esperamo-vos
a cada dia e esta deveria ser minha última Carta. Mas compreendo o que prolonga
vossa estada no exército e tremo. Júlia não está menos inquieta, pede-vos que
mandeis notícias vossas com maior frequência e vos suplica que penseis, ao
expor vossa pessoa, como esbanjais o sossego de vossos amigos. Quanto a mim,
nada tenho a dizer- vos. Fazei vosso dever, um conselho covarde não pode sair
de meu coração como também não pode ter acesso ao vosso. Caro Bomston, sei-o
perfeitamente, a única morre digna de tua vida seria a de derramar teu sangue
pela glória de teu país, mas não deves dar conta de tua vida àquele que somente
por ti conservou a sua?
[1] Duas Cartas escritas em momentos diferentes
falavam sobre o assunto desta, o que ocasionava muitas repetições inúteis. Para
retirá-las, reuni estas duas Cartas numa só. De resto, sem querer justificar a
excessiva extensão de várias cartas que compõe esta coletânea, observarei que
as cartas dos solitários são longas e raras, as das pessoas da sociedade freqüentes
e curtas. Basta observar esta diferença para sentir imediatamente sua razão.
(N.A.)
[2] "Emudecem as línguas e falam as almas.”
(Marini) (N.T.)
[3]
O próprio Locke, o sábio Locke, esqueceu-a; diz bem mais o que se deve exigir
das crianças do que o que se deve fazer para obtê-lo. (N.A)
[4]Esta doutrina tão verdadeira surpreende-me no
Sr. de Wolmar; veremos em breve por quê. (N.A.)
[6] Se alguma vez a vaidade tomou alguém feliz na
terra, infalivelmente esse feliz era apenas um tolo. (N.A.)
[8] Isto não mc parece bem
observado. Nada c tão necessário ao julgamento quanto a memória: 6
verdade que não 6 a memória das palavras. (N.A.)